Precatórios não são créditos de segunda categoria
Investidores poderiam convencer-se de que títulos do Tesouro seriam créditos podres
Maílson da Nóbrega, O Estado de S.Paulo
13 de outubro de 2020 | 03h00
Precatórios são obrigações reconhecidas pelo Judiciário em sentenças transitadas em julgados (definitivas). Trata-se de dívidas líquidas e certas da União, dos Estados ou dos municípios relativas a salários, aposentadorias e similares, indenizações por desapropriação, cobrança indevida de tributos e intervenções equivocadas na economia.
Sob o aspecto jurídico, precatórios constituem uma das várias modalidades de obrigações financeiras, tais como pagamento de salários, benefícios previdenciários, aquisições de bens e serviços, bem como de juros e amortizações da dívida pública. Assim, não há diferença formal entre precatórios e títulos do Tesouro (LFTs, LTNs e BTNs).
Apesar disso, os três Poderes têm tratado os precatórios como créditos de segunda categoria. Só recentemente a União passou a incluir habitualmente em seu Orçamento anual os seus correspondentes valores. Estados e municípios, com o apoio do Congresso Nacional, conseguiram emendas constitucionais que parcelaram o pagamento de precatórios. Em duas ocasiões o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou a tentativa de calote.
Os titulares dessas ações judiciais têm enfrentado as incertezas, as despesas dos processos e os custos de oportunidade decorrentes de longa tramitação no Judiciário. Há muitos casos em que os autores não sobreviveram ao tempo de sua conclusão.
O Poder Executivo deveria preparar-se para defender seus interesses nos respectivos processos, mediante narrativas e demonstrações críveis, capazes de convencer os juízes da procedência de sua argumentação. Não é o que tem sido feito, infelizmente. Ao mesmo tempo, cumpriria ao Poder Judiciário munir-se de informações técnicas necessárias para evitar erros de julgamento.
À falta de uma defesa eficaz ou convencido da solidez dos argumentos das partes no processo, o Executivo tem recorrido ao método de tentar sensibilizar os juízes para o impacto financeiro de eventual derrota. O objetivo é assustar e, assim, desconstruir argumentos ou degradar o valor da respectiva indenização.
Se a estratégia antes da decisão judicial não produzir o efeito desejado, recorre-se à suspensão do pagamento dos precatórios, o que, como vimos, tem sido comum em casos envolvendo Estados e municípios. Assim, antes ou depois, o poder público tem agido no sentido de não reconhecer a obrigação ou de adiar ao máximo o seu cumprimento.
Uma demonstração patética dessa realidade foi o recente caso em que um senador, ao que consta, com o consentimento de autoridades federais, propôs fixar o limite de 2% das receitas correntes líquidas da União para o pagamento de precatórios. A reação negativa da imprensa e de economistas, advogados e do mercado financeiro obrigou o governo federal a recuar dessa barbaridade. O ministro da pasta rechaçou a proposta com argumentos corretos.
O senador utilizou justificativa canhestra para o calote, recorrendo a uma metáfora. Para ele, o governo federal estaria na situação de doença grave numa família, que lhe impõe gastos excessivos. Seria razoável, assim, informar os credores da impossibilidade de pagamento integral da dívida, adiando parte do resgate. O parlamentar parece não se ter dado conta de que sua fábula podia ser estendida ao pagamento de títulos do Tesouro ou aos desembolsos com salários, aposentadorias e pensões.
Além disso, a proposta implicava ação unilateral do devedor, uma atitude autoritária que desprezaria a seriedade que deve imperar nas relações entre as partes de um contrato. Suspensões do pagamento de dívidas pressupõem negociações prévias e o direito dos credores de recorrer ao Judiciário para se contraporem a eventual esbulho. No mundo das convenções formais, o calote unilateral é típico de devedores relapsos, jamais de um governo que precisa preservar a confiança para assegurar a rolagem de sua gigantesca dívida mobiliária.
Para complicar, o ministro da Economia, diante da elevação do valor de indenizações, sugeriu a existência de uma indústria de precatórios. Acontece que os precatórios derivam, vale repetir, de sentenças transitadas em julgado, a grande maioria de tribunais superiores. Assim, o ministro estaria admitindo que juízes seriam parte dessa “indústria”, uma grave acusação. Ou arvorando-se no direito de questionar decisões de outro Poder, ao qual deve absoluta deferência. O aumento no valor dos precatórios pode ser explicado pelo fato de o Judiciário ter julgado em blocos vários casos sobre a mesma questão jurídica, até mesmo mediante o uso da inteligência artificial.
Casos como o que envolveu a ideia de não pagar inteiramente os precatórios, para assim tornar viável o programa Renda Cidadã, podem criar sérios riscos. Os investidores podem convencer-se de que títulos do Tesouro teriam o mesmo tratamento, o de créditos podres. Fugiriam de títulos públicos ou demandariam prêmios maiores, o que seria desastroso para a economia e a geração de empregos e renda. Não se pode brincar com coisas sérias.
ECONOMISTA, SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA.
Fonte: Folha de São Paulo